#Direitos Humanos e Solidariedade

Cultura e Integração

Equipa de Autonomia Supervisionada

Os Direitos Humanos são inatos e universais: existem para TODOS desde a nossa existência. É importante conhecê-los. Nesse sentido, deixamos o convite a (re)descobri-los em família ou entre amigos.

A proposta de pensar nos direitos humanos levou-nos de imediato a pensar nos Jovens Estrangeiros Não Acompanhados (JENA) que vêem sistematicamente os seus direitos comprometidos e violentados de diversas formas. A minha ligação a estes jovens tem vindo a acontecer pela investigação académica, pelo acompanhamento psicológico em contexto institucional, no passado, e mais recentemente, por via da supervisão das equipas dos apartamentos de autonomização ou da autonomia supervisionada. Nestes vários contextos fui construindo algumas reflexões, que procuramos partilhar, a par com as muitas dúvidas e inquietações que persistem.

Lembramos novamente o filme “Tori e Lokita” (realizado por Jean-Pierre e Luz Dardenne), que conta a história de dois jovens/crianças menores que deixaram o seu país africano e procuram (sobre)viver na Bélgica. É uma história simultaneamente crua e profundamente tocante. Estes dois jovens têm um amor fraterno lindíssimo, de proteção, cuidado e carinho, que coloca a descoberto a forma como parecem tão sozinhos e desamparados no mundo. E os desamparos são múltiplos e de vários níveis, do sistema que regula a entrada e permanência de estrangeiros, do sistema de proteção de menores, dos centros educativos, das escolas, da sociedade em geral. Há uma falha geral e persistente em proteger estes jovens que se encontram expostos a perigos constantes; a extorsão pelos “smugglers” com quem negociaram a saída do país de origem, a venda de drogas com entrega à porta dos consumidores, o trabalho ilegal em troca de pouquíssimo dinheiro, muito próximo da escravatura, a violência e os abusos constantes. No fundo, são duas vidas expostas a perigos muito concretos, numa realidade cruel e indiferente. O filme retrata também a importância dos sonhos e do desejo. Estes jovens preservam uma capacidade incrível de se manterem ligados ao desejo, ele de estudar, e ela de se tornar emprega de limpeza, depois de ter os documentos. Em ambos, a vida continua a pulsar e vamos vendo o quanto se mantêm

A especificidade da realidade retratada neste filme ajuda-nos a refletir e incita a uma procura de compreensão, mas é importante termos presente que, quando falamos em JENA não estamos, naturalmente, a considerar um grupo homogéneo. Se isto é verdade para todos os jovens, ou seja, que não são um grupo homogéneo, neste caso, convém salientar ainda mais esta dimensão, porque acontece com frequência tomar-se o todo pela parte, e negar-se que existe de facto uma heterogeneidade entre os jovens estrangeiros não acompanhados, atendendo a vários factores: as suas origens, ou seja, as dimensões históricas, geopolíticas, culturais e religiosas, os motivos que os levaram a sair do país, as vicissitudes de todo o trajeto migratório que viveram e, por fim, as condições do acolhimento e da integração no novo país.

Ainda sobre este assunto, parece existir alguma ambiguidade quanto à intervenção que deve ser considerada junto destes jovens:

Será necessária uma intervenção especifica?

A intervenção deverá ser comum aos jovens nacionais?

 

Penso que estes jovens têm de facto uma especificidade que, por vezes, tende a ser desvalorizada que se refere à inscrição cultural. A cultura pode ser entendida como um conjunto de representações que servem para definir uma identidade colectiva. No entanto, numa perspectiva mais restrita, a cultura corresponde a um conjunto de símbolos, possuindo relações de sentido (crenças, valores, mitos, rituais), promovendo as diferenças culturais, de modo a que possam ser definidas regras estruturantes de um determinado universo de significações (Anzieu, 1993; Kaës, 1997).

Quer isto dizer que a inscrição cultural é simultaneamente uma inscrição psíquica, cujos significados e sentidos terão necessariamente de ser compreendidos à luz desconhecida. A cultura enquanto espaço intermediário tem também uma função contentora e organizadora que permite elaborar as angústias, mas no caso dos JENA este espaço intermediário fica mais difuso não sendo fácil encontrar uma alternativa a esta função. No filme assistimos a Tori e Lorkita à procura das referências internas e culturais do país de origem, da infância. À noite, quando tudo se torna escuro e assustador e é impossível fechar os olhos para dar lugar ao sono/sonho, aparecem as canções de embalar da infância, (em dialeto, ou seja, na língua materna), aquelas que foram cantadas por quem teve essa função de elaborar as angústias.

No filme sabemos muito pouco sobre o passado de Tori e Lorkita, e de alguma forma ficamos com vontade saber mais, de compreender as razões que levaram estes jovens a deixar o seu país. Sobre os motivos desta saída e a ligação ao país de origem testemunhamos apenas alguns telefonemas, que tornam claro a forma como a família espera que estes jovens ajudem financeiramente quem ficou no país de origem. Propositadamente, ou não, pelos realizadores do filme é interessante terem-se focado no percurso de vida destes jovens já no país de acolhimento e, com isso, irmos testemunhando o drama das suas vidas, neste caso na Bélgica, mas poderia ser também em Portugal.

De um modo geral, penso que tende a existir uma associação entre os jovens não acompanhados e o trauma no país de origem. Para muitos destes jovens, existiram várias dificuldades e vivências marcadas por uma enorme violência, desde a saída do país de origem até à chegada a um novo país. No entanto, sabe-se que os eventos externos potencialmente traumáticos, por assim dizer, não têm exatamente correspondência com aquilo que consideramos ser um trauma psíquico. Ou seja, associação excessiva entre trauma e JENA pode conduzir a uma patologização desta população que acaba por ter uma dimensão estigmatizante, pode conduzir a uma visão muito redutora e pode impedir a possibilidade de ver as capacidades que estes jovens preservam.

Para muitos jovens poderá ser vital falar sobre o passado, pela possibilidade de nomear e atribuir um significado àquilo que foram experiências e vivências, por vezes, muito dolorosas e com um enorme sofrimento. Para outros jovens o verdadeiro “trauma”, por assim dizer, poderá ser a discriminação e o racismo a que estão sujeitos, ou as múltiplas barreiras que encontram no país de acolhimento, que impedem o desenvolvimento de um sentimento de pertença, essencial e estruturante psiquicamente. Freud procurou compreender o racismo socorrendo-se da noção de “estranho”, cuja etimologia da palavra alemã “unheimlich”, combina o familiar (heim) com a sua negação (un). A partir da reflexão sobre a origem e a formação etimológica da palavra, Freud conclui que aquilo que nos causa estranheza ou repulsa é paradoxalmente aquilo que nos é mais familiar, embora esteja reprimido no nosso inconsciente. O racismo corresponderia assim, à projeção das características indesejadas, partes consideradas “más”, no outro, tradicionalmente negro, preservando assim uma imagem positiva no branco.

Tendo em conta que a grande maioria dos JENA em Portugal são negros, provenientes de países africanos, parece relevante atentar a esta dimensão do racismo a que estão sujeitos estes jovens numa base diária, no seu cotidiano. Este racismo encontra-se presente nas relações em contexto escolar ou laboral, mas também na sociedade portuguesa como um todo e permeia as instituições e profissionais relevantes na intervenção com os jovens não acompanhados.

Por último, referir que todas estas especificidades da intervenção com os jovens estrangeiros não acompanhados justificam uma formação específica dos profissionais. É importante reconhecer que existem abordagens marcadamente etnocêntricas que não permitem apreender e compreender outras formas de expressão, fortemente diferenciadas em termos culturais. Os currículos académicos da formação de profissionais que trabalham nesta área, pouco ou nada abordam instrumentos conceptuais e metodológicos que permitam intervir nas problemáticas bem diversas que caracterizam estas populações. No contato e trabalho com estes jovens penso que é também necessário que cada profissional vá compreendendo internamente que lugar reserva a estes jovens.

Quem são e que lugar ocupam dentro de mim os jovens estrangeiros não acompanhados?

Como me relaciono internamente com estes jovens?

Talvez estas respostas só se possam encontrar, ou melhor, ir encontrando, se formos sabendo um pouco mais sobre nós próprios e sobre a nossa relação interna com a alteridade.

 

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