Rui Lopes

// Fala sobre Participação

Conversa com especialista

Rui Lopes

Breve nota curricular: 

Psicólogo Educacional (ISPA) e Mestre em Intervenção Comunitária e Proteção de Crianças e Jovens (ISCTE), com certificação em Intervenção Terapêutica na Crise (Cornell University / GC Children’s Services) e em Acolhimento Residencial de Crianças e Jovens (Oklahoma University OutReach).

Tem exercido funções sobretudo em escolas e em casas de acolhimento de crianças e jovens. Em contexto escolar, trabalhou como psicólogo e coordenou serviços de psicologia, educação especial, e ação social. Em acolhimento, trabalhou como cuidador e diretor, em Portugal e nos Estados Unidos da América. Entusiasta das práticas reflexivas e do trabalho colaborativo, bem como do desenvolvimento dos indivíduos e das organizações, presta desde 2008 serviços de formação, supervisão de equipas, mentoria profissional e consultoria organizacional.

“Participação” é um substantivo feminino de origem latina. Provém de “pars + in + actio” e significa ter parte na ação, ou seja, pertencer para agir. Podemos assim desde já assumir que a pertença é uma pré-condição para a possibilidade de agir. Isto é, sem pertencer não é possível agir. Julgo, porém, que a ação tem dois outros pré-requisitos: o sentir e o pensar. Só uma ação sentida e pensada pode gerar um qualquer resultado: uma relação, uma aprendizagem, um produto. Podemos então pressupor uma sequência lógica de eventos que inclui sentimento, pensamento, pertença e ação, operacionalizada do seguinte modo:

sinto – penso – pertenço – ajo

Nem sempre o senso comum e a sabedoria popular são facilitadores do nosso entendimento da participação e da ação, sobretudo daqueles que se encontram em lugar de alguma fragilidade ou dependência, como é o caso das crianças e jovens. Por exemplo, expressões como “cresce e aparece” ou “ganhar pelo na venta” (entre inúmeras outras que pretendem manter a criança num lugar de diminuída possibilidade de participar) são contratos delinquentes, ou seja, contratos tácitos, estabelecidos entre adultos autoritários e crianças desprovidas de autonomia, que são objetos e não sujeitos nos locais onde habitam: escolas, famílias, comunidade. Antes, têm de sujeitar-se à ação dos adultos, não chegando por vezes sequer a ser recipientes das ações destes, restando-lhes apenas sonhar com um tempo e um lugar distantes, nos quais poderiam ser encaradas e tratadas como recursos.

Há tempos ouvi uma jovem dizer que quando mais participa é quando as instituições permitem que os jovens “implementem programas de participação”.

Parece-me sempre pouco que um jovem só possa participar quando um adulto lhe dá permissão. Menos ainda quando essa participação tem de transvestir-se de formalismos institucionais, como assembleias, comités, grupos terapêuticos, reuniões comunitárias, entre outros. Acredito que nas instituições que trabalham com crianças e jovens a relação que estas estabelecem com os adultos deve naturalizar-se. A intervenção beneficia em ser apenas suficientemente formal ou institucional, operacionalizando-se através da promoção da participação em torno de dinâmicas quotidianas tão naturais como: necessidades básicas de alimentação e higiene, decoração de espaços pessoais, escolha própria de modos de expressão individual (e.g. música, atividades, indumentária), clarificação e aceitação de planos e pretensões, consensualização de projetos de educação e formação, ou de projetos de vida.

Chico Buarque, na sua canção “Bom Conselho”, canta "aja duas vezes, antes de pensar" – contra a passividade, contra a morte em vida, em favor da vitalidade e da possibilidade da intervenção de todos, mesmo daqueles que, por diversas razões, podem estar particularmente constrangidos na sua capacidade reflexiva, como por exemplo, crianças e jovens em respostas de cuidados alternativos com passados profundamente marcados pelo trauma e pela adversidade, com todas as implicações que isso pode ter no seu desenvolvimento neurológico, na sua saúde física e mental, e no modo como por vezes se expressam através de comportamentos especialmente perturbados, confusos e agidos. Será inútil procurar o adestramento de crianças, apenas tentativamente contidos pela erudição de profissionais contagiados pela fácil ilusão de que é pelo saber e não pela sabedoria que se conduzem processos educativos ou terapêuticos. Estarão também equivocados todos aqueles que julgarem poder fazê-lo sem se dar na sua plenitude como pessoas, com todas as suas potências e vulnerabilidades.

Nas palavras de Donald Winnicott,

“o terapeuta deve dar-se para ser usado pelo paciente”

Em favor deste e da promoção da sua emancipação. Neste sentido, acrescenta-se um elemento à sequência lógica entre sentimento e ação: o empoderamento.

sinto – penso – pertenço – empodero-me – ajo

Participar é também uma forma de protesto, e protestar é uma forma de participação – para sermos quem somos, exercermos o que somos, lutarmos contra injustiças. As formas de protesto serão tantas quanto os motivos para protestar. Protestar é exercitar a cidadania e a intervenção nas nossas comunidades – sejam elas cidades, vilas, aldeias, lugares ou lugarejos. E também nas instituições – seja numa escola, numa qualquer entidade de apoio à infância, ou na família.

Manel Cruz, artista português multifacetado, em entrevista no podcast “O Poema Ensina a Cair”, conta que quando era criança, estando muito zangado com a Mãe e exprimindo-se principalmente através do desenho, fez um desenho da Mãe como forma de a agredir e de protestar. Chamou ao desenho “Mãe nua por Mal”. Segundo o próprio, o desenho era hostil e “a Mãe foi desenhada com tudo à frente, rabo e tudo”. Consta, porém, que a Mãe achou imensa graça ao desenho e quis guardá-lo. De facto, nem sempre os protestos surtem o efeito pretendido, mas isso não significa a inexistência de valor no agir. É importante acreditar no valor das nossas ações, independentemente das suas consequências ou impactos. Até porque, dessa crença, podem mais frequente e provavelmente surgir precisamente essas consequências ou impactos. Acrescentaríamos aqui mais um novo elemento à nossa sequência lógica: a crença.

sinto – penso – pertenço – empodero-me – creio – ajo.

Há cerca de 10 anos, uma professora de educação visual com quem eu trabalhava numa escola onde exercia como psicólogo, e que sabia que eu era músico, mas que andava relativamente afastado das salas de ensaio, dos estúdios e dos palcos, perguntou-me se eu não tinha saudades do processo criativo. Pensei apenas uns breves segundos e espontaneamente respondi que não. Mas nos dias seguintes permaneci inquieto. Não tanto pela pergunta que me tinha sido dirigida, mas sobretudo pela minha resposta.

 

Como poderia não ter saudades do processo criativo, se eu me desenvolvera na convicção de que o processo criativo desempenhava em mim uma função absolutamente vital?

 

Realizei depois que não podia ter saudades, pois o processo criativo não estava ausente da minha vida. Através do desenvolvimento de diversas atividades, projetos e programas de intervenção (inclusivamente com recurso à música e à percussão) junto de crianças, jovens, famílias, professores e outros colegas com quem trabalhava, eu exercia a minha criatividade e colocava-a ao serviço das pessoas.

A razão pela qual relato estas histórias, é porque creio que podem convocar à consciencialização de que criar é uma forma de agir, uma forma de participar. Existe uma relação entre arte e ação – não apenas para o artista, mas também para o espectador/consumidor. A literatura exerce talvez esse efeito de um modo muito particular. Nesse sentido, Agustina Bessa Luís refere que “apenas os que leem e os que escrevem sabem ouvir”. E tal como já ouvi a ser dito por um jovem, para poder participar mais é preciso saber escutar. Disse ele: “não basta querer ajudar, é preciso saber escutar mais”. Mas também outras formas de arte, como as musicais, as plásticas, as performativas, são formas inegáveis de ação – individual, coletiva, cívica, social e política. Porque mesmo quando não as produzimos, mas apenas participamos enquanto espectadores, emprestam-nos a sensação de estar lá, de sermos nós quem está a agir.

Isto reforça a importância do papel, da função e acima de tudo da ação do adulto em todos os momentos da sua relação com a criança e com o jovem – mesmo quando a criança está apenas a assistir e não a produzir, ela nunca é espectadora passiva. Assim, promover a cultura junto das crianças e jovens de quem cuidamos é também cuidar da sua participação, pois importa sublinhar o concreto, mas também o simbólico e a metáfora na ação de cuidar do crescimento da criança. Fica assim completa a sequência lógica que aqui pretendo apresentar neste domínio da participação: a criação.

sinto – penso – pertenço – empodero-me – creio – ajo – crio

Retomando a ideia de que participação significa pertencer para agir, diz Elli Benincá que para ter parte na ação é necessário ter acesso à possibilidade de agir. Complementarmente, que o agir, por si só, não significa ter parte na ação, ou seja, ter responsabilidade sobre a ação. E assim sendo, só será sujeito da ação quem puder decidir sobre ela. Contudo, participar não é o mesmo que decidir e da confusão entre as duas pode, inclusivamente, originar-se uma diminuição da possibilidade de participar. Ora vejamos:

Na casa de acolhimento residencial de jovens que dirigi, onde procurávamos aceitar a complexidade da intervenção no âmbito dos cuidados alternativos, a nossa tarefa primária (isto é, a tarefa que executávamos acima de todas as outras, sob pena de deixarmos de existir) definia-se do seguinte modo: “transformar a realidade psíquica, social e familiar dos jovens acolhidos, de modo a que sejam capazes de fazer escolhas positivas para as suas vidas”. A escolha de um jovem sobre os seus relacionamentos, sobre os seus tempos livres, o seu percurso formativo, ou o seu projeto de vida, são escolhas muito importantes a ser realizadas em diferentes momentos. Num primeiro olhar podem parecer decisões com ordens de importância bastante diferentes, mas, similarmente, todas consideradas como muito importantes para os jovens que têm de tomá-las. Diria então que, de um modo transversal, o valor das decisões não é um valor absoluto, mas sim um valor relativo, associado ao facto de as decisões serem tomadas pelos próprios. Ou seja, quanto mais as decisões forem verdadeiramente tomadas por nós, mais valiosas e importantes elas se tornam.

Podem então os pequenos gestos ter grandes impactos?

E podem os grandes gestos ser insignificantes?

É certamente tão importante participar nas pequenas ações que sustentam o mundo, como é decidir sobre os grandes empreendimentos que o transformam. Acreditar que só existe valor nas grandes decisões pode impedir-nos de promover a participação – essa coisa quotidiana, mais simples do que complexa, e que acrescenta ganhos tanto para quem participa, como para quem a promove. Reconhecer que todas as crianças e jovens têm um lugar, respeitar a sua individualidade e atribuir-lhes voz para que possam expressar-se em liberdade é um ato amor de elevadíssima responsabilidade. A efetiva capacidade do adulto para promover a participação reside na forma coerente e consistente como se relaciona com a criança, e pelos pequenos gestos quotidianos que decide utilizar para sustentar essa mesma relação – seja na escola, na família ou na comunidade.

As Aldeias de Crianças SOS são a maior organização do mundo a apoiar crianças e jovens em perigo ou em risco de perder o cuidado parental.
 

Acredite num mundo onde todas as crianças crescem em amor e segurança. 

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