Rita Pereira Marques

// O grito do Eu Sou como força de

resistência ao admirável mundo novo da IA 

Conversa com especialista

Rita Pereira Marques

Psicóloga Clínica pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UL; Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e Psicologia Comunitária pela OPP; Psicoterapeuta Credenciada da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica; Mestre em Psicologia (Secção de Psicologia Clínica e da Saúde/ Núcleo Psicologia Clínica Dinâmica) com a tese “Homicídio Conjugal como Sintoma” pela FPCE da UL.; Artista Plástica pelo AR.CO – Centro de Arte & Comunicação Visual; Projeto Individual de Artes Plásticas do AR.CO com Bolsa de Estudos Fundação Carmona e Costa 2021/2022 https://ritapereiramarques.weebly.com/; Membro fundador e Vice-Presidente da Associação Winnicottiana Portuguesa – Centro de Investigação (CIWP) e Formadora no Curso de Especialização Winnicottiana winnicott-portugal.com - Winnicott-Portugal Psicologia; Experiência profissional, desde 2007, no âmbito institucional, nomeadamente na Clínica Psiquiátrica de São José, no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, na CRESCER, Associação de Intervenção Comunitária com pessoas em situação de sem abrigo e na Aldeia SOS de Bicesse.

Formação e experiência profissional, desde 2002, em clínica privada.

"Que cada criança possa encontrar numa casa de acolhimento residencial de cariz familiar e terapêutico “um ambiente adaptado às suas necessidades individuais, sem o qual não podem ser estabelecidos os alicerces da saúde mental” "

(Winnicott, 1947)

Uma criança acolhida numa casa de acolhimento residencial é um ser humano que sofreu, num determinado período do seu desenvolvimento mais ou menos precoce, uma interrupção traumática na sua continuidade de ser, mas também um ser humano com um potencial inato de retoma do processo de amadurecimento suspenso.

É assim primordial o entendimento de que o acolhimento residencial deve passar pelo conhecimento de quais são as condições suficientemente boas para que cada criança possa retomar o seu processo de amadurecimento suspenso.

As crianças acolhidas são crianças suspensas.

Acolher significaria cuidar não só da segurança e integridade biopsicossocial mas também, e sobretudo, cuidar dos processos e das tarefas de amadurecimento que poderão estar suspensos/ à espera de ser vividos.

Só assim daquela criança ressurgirá uma criança com capacidade de brincar, aceder à experiência de criar um mundo novo, um Eu SOU! e futuramente um adulto maduro e um cidadão.

Diz-nos Winnicott “Sem alguém especificamente orientado para as suas necessidades, a criança não pode encontrar uma relação operacional com a realidade externa. Sem alguém que lhe proporcione satisfações instintivas razoáveis, a criança não pode descobrir o seu corpo nem desenvolver uma personalidade integrada. Sem uma pessoa a quem possa amar e odiar, a criança não pode chegar a saber amar e odiar a mesma pessoa e, assim, não pode descobrir o seu sentimento de culpa nem o seu desejo de restaurar e recuperar. Sem um ambiente humano e físico limitado que ela possa conhecer, a criança não pode descobrir até que ponto as suas ideias agressivas não podem realmente destruir e, por conseguinte, não pode discernir fantasia de facto. Sem um pai e uma mãe que estejam juntos e assumam juntos a responsabilidade por ela, a criança não pode encontrar e expressar o seu impulso para separá-los nem sentir alívio por não conseguir fazê-lo. O desenvolvimento emocional dos primeiros anos é complexo e não pode ser omitido, e toda a criança necessita absolutamente de um certo grau de ambiente favorável se quiser transpor os primeiros e essenciais estágios desse desenvolvimento”. (Winnicott, 1947)

Significa isto que a recuperação da saúde destas crianças seria sinónimo da retoma do amadurecimento suspenso e que o cuidado técnico passaria pela promoção das condições ambientais favoráveis à retoma de processos de extrema precocidade, complexidade e até, por vezes e necessariamente, de destrutividade.

Daí a necessidade também de pensar na preservação contínua, estável, permanente de todo o ambiente em que a criança é acolhida e nos técnicos que a compõem.

Nenhum ser humano (por mais potencial e saúde que tenha) consegue alcançar um amadurecimento equilibrado num ambiente descontínuo, invasivo, incoerente e que não sobreviva às faltas devastadoras que, muitas vezes, estas crianças comportam.

Se o mundo se apresenta precocemente em doses esmagadores de realidade sem que, por isso, seja percorrido o caminho da incorporação e integração de todas as tarefas necessárias à conquista do EU SOU! daí decorrerá seres em falta, em deprivação e desesperança.

“Toda a criança tem o direito de crescer num bom lar, e ver-se privada disso é uma desgraça” (Winnicott, 1947)

 

Crescer num bom lar significaria poder crescer num ambiente suficientemente bom com cuidadores que “sobrevivam” ao processo repetitivo e necessário de danificação e reparação do ambiente e dos cuidadores. Ao impedir, não permitir ou não conter a manifestação da agressividade significaria, na perspetiva de Winnicott, impedir que a criança aceda ao ciclo benigno de danificação e reparação, à capacidade de culpa e de se preocupar com o Outro.

É porque posso manifestar a minha agressividade sem destruição total do outro (os adultos sobrevivem!) que sou capaz de me diferenciar, colocar-me no lugar do outro e perceber as consequências dos meus atos. Só assim chegaria a um EU SOU sólido e unitário.

Acompanhamos, uns surpresos e desprevenidos, outros apreensivos e pessimistas e outros ainda curiosos à expansão e fortalecimento da inteligência artificial (IA) e à forma como esta “pirateou o sistema operacional da civilização humana” (Yuval Noah Harari, 2023). 

Parece-nos que, atualmente, a existência de uma inteligência não humana problematiza todo o entendimento clássico sobre o que seriam as condições suficientemente boas de desenvolvimento e amadurecimento de cada ser humano e de cada criança.

Simplesmente as condições ambientais para o desenvolvimento humano já mudaram quando integrado no seu desenvolvimento estão questões como “pode uma inteligência não humana se tornar melhor do que o ser humano médio a contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis e escrituras”? (Yuval Noah Harari, 12.05.2023 cit. Jornal de O Expresso”)

Pensamos também que a experiência do brincar e do “criar mundos” está a mudar porque com a IA introduz-se uma alteração profunda da experiência física, da experiência somática afeta e essencial ao desenvolvimento da Unidade do Ser. Com a IA cada ser humano é remetido para um lugar passivo com predomínio do mental e em detrimento da ação criativa.

Como assegurar aquilo que, na perspetiva do Winnicott, seriam os garantes da saúde e do desenvolvimento de seres humanos vivos e maduros quando, com a IA, parece-nos estarem comprometidos não só os princípios da manutenção de um ambiente suficientemente bom onde cada ser humano teria a possibilidade de viver, a seu tempo, a sua subjetividade, construir com a sua omnipotência, mas também lidar com a sua capacidade de criar e de brincar e manejar a sua agressividade para bem da sua capacidade de concernimento, noção do Outro e existência de sentimento de culpa?

A IA parece promover um ambiente onde cada ser é chamado a um processo de anulação da criação própria, anulação do labor e da ação, anulação da aceitação da limitação, da complexidade e até do erro. Fixa o ser humano numa omnipotência onde a introdução gradual da falha é cada vez menor e, portanto, cada vez menor o acesso ao estado do Eu Sou e, ainda mais preocupante, o acesso ao Eu Unitário psicossomático.

Como preservar o caminho necessário da vivência gradual da passagem da subjetividade para a realidade objetiva quando a IA apresenta, de imediato, uma verdade objetiva organizada, linear sem mutualidade e reciprocidade?

Sabemos que, como em todos os processos de mudança de paradigma, o recuo e o retorno ao conhecimento anterior são impossíveis. Não é e não será possível anular a existência e presença da IA nas nossas vidas.

Torna-se então imperioso pensar como manter as condições básicas ambientais para o desenvolvimento de cada ser humano com o surgimento da IA, mas também e sobretudo, se será possível colocar a IA ao serviço das dificuldades de desenvolvimento e crescimento de seres humanos, como por exemplo, as crianças em desenvolvimento em acolhimento residencial?

Poderá a IA ajudar-nos a encontrar

alternativas para o desenvolvimento

de crianças em processos de

desenvolvimento suspensos?

Ou, pelo contrário, levar-nos-á a intensificar um caminho onde “a técnica e a burocracia propagam uma desumanidade gelada, mecânica, desintegram pelas suas quantificações as realidades vividas dos seres de carne, sangue e alma. A especialização e a compartimentação destroem o sentido da responsabilidade. Assim cresce a crueldade pela indiferença, a desatenção e a cegueira “? (Edgar Morin, 1994)

Morin considera que “as únicas resistências residem nas forças de cooperação, de comunicação, de compreensão, de amizade, de comunidade e de amor, na condição de serem acompanhadas pela perspicácia e pela inteligência, cuja ausência se arrisca a favorecer as forças da crueldade (…)”.

A ser assim isto significaria que, mais uma vez, a questão não seria o desenvolvimento da IA, mas como é que cada ser humano contacta com esta ferramenta, como a recebe e que tipo de usufruto e manejo fará para si e para os outros. 

Indo mais longe, diria que estas forças de resistência (de cooperação, de comunicação, de compreensão, de amizade, de comunidade e de amor) essenciais na nossa atualidade só seriam existentes em crianças que puderam ou poderão passar pela complexa tarefa do Eu Sou que as levará para o caminho de adultos maduros únicos garantes de sociedades democráticas.

Leia algumas perguntas e respostas colocas à IA pela especilalista Rita Pereira Marques e reflita sobre este tema.

Respostas da IA

As Aldeias de Crianças SOS são a maior organização do mundo a apoiar crianças e jovens em perigo ou em risco de perder o cuidado parental.
 

Acredite num mundo onde todas as crianças crescem em amor e segurança. 

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