Helena Eirô

// Fala sobre Parentalidade

Conversa com especialista

Helena Eirô

Breve nota curricular: 

Helena Eirô Ferreira, Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta (Individual, de Casal e de Família), Psicodramatista, Docente universitária.

Hoje conversamos acerca do conceito de parentalidade, sob a lupa da perspectiva psicanalítica, embora este conceito possa obviamente ser visto sob outros pontos de vista de áreas do saber. A minha proposta seguirá no sentido de pensarmos as interacções, os laços sociais, a parentalidade como o onde um sujeito tenta escutar um outro, escutando-o na sua subjectividade, levando em consideração as condições de existência de cada um.

O termo parentalidade surge, pela primeira vez, no interessante texto “Parenthood as a Developmental Phase: a Contribution to the Libido Theory” (1959), de Therese Benedek, no qual a psicanalista húngara propõe que a parentalidade – e não a adolescência – seria a ultima fase do desenvolvimento libidinal. Naquela época, havia a ideia de que o nascimento de um filho mudaria algo no desenvolvimento da mulher (importância atribuída ao género).

Embora Benedek seja a precursora do uso do termo, ele passou a ser associado ao psicanalista francês Paul-Claude Racamier (anos 60), retornando com força na década de 80 com René Clement e Serge Lebovici, associado aos estudos das patologias puerperais e aos seus efeitos sobre a prole. Pesquisas sobre a psicose infantil e o autismo aludem para a importância das funções parentais na constituição do sujeito.

Lebovici traz, com uma certa frescura, um olhar mais amplo: apresenta uma visão transgeracional que fala sobre o que nós, humanos, herdamos da família, sobre o que passamos como legado, englobando uma visão social, com uma lente transversal sobre o que fazemos e como incorporamos essa herança. Com o trabalho e desdobramento destas ideias, actualmente entendemos parentalidade como o papel de uma geração, composta por pais, avós, cuidadores e todas as pessoas responsáveis pelos cuidados e educação de uma criança ou jovem. A noção de parentalidade está intimamente ligada à produção de discursos, crenças e valores de uma geração, que servirão de elementos-base para a constituição de uma nova geração, garantindo a sua subjectividade de acordo com a época e a sociedade em que vivem.

Função Parental, Papel Parental e Cuidado

    Quais as condições para a constituição subjectiva?

    O que precisamos para nos constituirmos um sujeito humano?

Tal feito pode apenas acontecer após o nascimento quando aparece aquela que será uma chave fundamental, que criará condições para a constituição psíquica do sujeito: a falta.

A que me refiro? Sabemos que a experiência uterina é de satisfação plena, marcada por um conjunto de marcas sensoriais (sons, sabores, texturas…) não reconhecidas como tais: são vivência pura. Não existe o atravessamento simbólico que permite que essas vivências se transformem em experiências, não existe (ainda) um aparelho psíquico capaz de gerir/sustentar isso a partir de um Eu organizador dessa vivência.

A tarefa em jogo para um bebé, aquando do seu nascimento, é a de vir a tornar-se um sujeito, esse será o maior desafio de um bebé que precisa de um corpo para existir - necessário mas não suficiente.

Pensemos como ocorre este processo. O sentido de humanidade é transmitido entre humanos, é algo que nós, no laço social e de afecto, somos capazes de fazer com que aconteça, se o bebé tiver reunidas algumas competências básicas. Winnicott defendia a ideia de que determinadas condições/competências têm que se reunir para que isso suceda, ressaltando ainda a importância das memórias primitivas de todo ser humano, bem como o desenvolvimento biológico saudável do cérebro ou do sistema nervoso central. Com o desenvolvimento do cérebro (enquanto órgão em funcionamento) inicia-se o armazenamento de memórias corporais vividas ainda no útero, memórias estas que são agregadas e constituindo um ser humano, cujos movimentos do corpo e momentos de quietude na vida intrauterina não só são significativos como são vividos ‘de um modo silencioso’ (Winnicott, 1990).

O que está em jogo no cuidado ao recém-nascido que pode fazer com que no período que se situa entre os 6 meses aos 18 meses se constitua o advento do Eu? Deter-me-ei em alguns aspectos que naturalmente surgem em cada um de nós, sem necessidade de sermos mãe/pai, sem necessariamente termos um mestrado ou doutoramento em parentalidade.

Quando estamos perante um bebé, falamos com ele de uma forma bastante diferente daquela com que falamos com um amigo: esses picos prosódicos da fala (aos quais recorremos espontaneamente) captam a atenção do bebé. Nós, adultos, falamos com alguém que supomos ser um semelhante, interagimos com o bebé como se ele tudo entendesse acerca do que o circunda. Aliás, já fazemos isso mesmo com o bebé in útero! Quantas vezes não ouvimos interpretações sobre sentimentos/reacções do bebé acerca dos seus movimentos na barriga da mãe? No entanto… ele não é (ainda) propriamente um semelhante, no sentido de não estar ainda constituído psiquicamente como sujeito: o bebé não entende que existe alguém que fala com ele e que lhe diz uma determinada coisa. Isto leva-nos à ideia de que nós supomos a existência de um sujeito antes mesmo de ele existir como sujeito, existindo assim aquilo que podemos chamar de ilusão antecipatória de sujeito, que fazemos de forma espontânea e livre. Quando o bebé nasce atribuímos vontades e desejos a esse bebé, interpretando todos os movimentos dele, atribuindo-lhes intencionalidade, como se ele estivesse plenamente consciente de quem ele é, de quem somos nós e do lugar que ele ocupa no mundo. Estamos perante o supor a existência de um sujeito. Trata-se de uma condição muito importante para o desenvolvimento do bebé, tão importante que, se não existir, o bebé pode não sobreviver. Identificamos então o bebé como um sujeito que espera/exige algo de um Outro: quando chora talvez ele tenha fome, precise que eu o alimente, por exemplo. Logo, o bebé relaciona-se comigo, ele quer algo de mim, há algo que me liga a ele, que me diz respeito, nós estamos numa relação. Supõe-se, então, que o bebé exige algo de mim, ele sabe (deseja) algo e isso diz-me respeito. Estas suposições que vêm do lado de quem cuida, não estão colocadas no bebé mas são condições para virem a estar nele colocadas.

Uma outra condição importante será a possibilidade de deixar que algo venha do bebé, que ele possa manifestar-se e que possamos ter espaços de presença/ausência: o bebé que acorda no berço, faz um barulho, brinca com o seu pé e com a sua voz, vivendo essa experiência do prazer com o seu próprio corpo (embora ele não se conheça como sujeito), um auto-erotismo. Permitindo ao bebé continuar a brincar no berço, permitimos que (embora na ausência do adulto) ele possa simplesmente ser (eu não preciso ser o oxigénio do bebé, existe um espaço entre nós no qual ele também é, também existe, independentemente de mim).

Presença-ausência é um jogo fundamental que cria espaço entre o cuidador e o bebé. Esperamos que o bebé manifeste algo antes mesmo de respondermos, na lógica que aqui sigo: supondo que ali está um sujeito, que exige algo de mim, que pode fazer a réplica da nossa conversa (eu falo e ele responde). Estas são funções de alienação: eu ofereço ao bebé algo no qual ele pode alienar-se - eu ofereço o meu desejo, um lugar no laço social, ao qual ele pode alienar-se e tornar-se o meu bebé.

Um outro elemento fundamental para pensarmos será o do reconhecimento de que entre eu e o bebé existe uma lei à qual estamos submetidos, existe um espaço. O bebé não é tudo para mim e eu não sou tudo para ele, estamos portanto atravessados pela lei, para além da relação entre o cuidador e o bebé existe um terceiro. Estas são então funções de separação: nós não nos bastamos, nós precisamos de um terceiro, do Outro. O bebé responde, não só admite algo que vem de mim mas também responde e exige a partir dele próprio.

Na alienação temos então um Outro completo, infinito, portador de significantes, enquanto na separação a condição lógica introduz um Outro em falta.

Piera Aulagnier (1975) fala-nos no conceito de violência da interpretação: eu, na presença do bebé e perante um determinado som por ele emitido, decido se será fome, sede, frio, antecipo-me, falo em nome do bebé, sou porta-voz do bebé e procedo à atribuição de um significado. Nunca iremos saber qual seria a real necessidade do bebé, supomos algo… (talvez o bebé só quisesse mudar de posição…), mas precisamos exercer essa violência de que nos fala Aulagnier. Com o passar do tempo, precisamos permitir que o bebé recuse a minha interpretação, cuspa o leite, reaja a mim sem eu própria me destruir.

Alienação e separação estabelecem uma relação dialética, têm que aparecer em simultâneo, numa dança constante. Desde o primeiro momento numa relação com o bebé ofereço tudo mas em algum momento sei que ele não poderá ser reintegrado, ele não é parte do meu corpo, nós estamos separados. Estas são as funções parentais, não têm género, não dependem da biologia de quem deu à luz. São funções e podem ser desempenhadas por cuidadores numa instituição. A função é matemática, estabelece relação entre elementos, não é generificada, mas ela supõe que esse sujeito possa estar ali para um bebé.

Isto significa então que deveremos ser intérpretes de bebés?
Tradutores de choro? Tradutores de caras?

 

Talvez não. Talvez signifique que teremos uma capacidade de nos identificarmos o máximo possível com o bebé. Entramos neste conceito de que nos fala Donald Winnicott a capacidade de identificação. Quem não é capaz de se identificar? Todos somos. Em várias coisas, embora nem sempre com o bebé. Não existe nada que indique à priori que uma pessoa é mais ou menos capaz dessa identificação com o bebé. Todos nós fomos cuidados (como defende Winnicott), sabemos o que é sentir tristeza, alegria, raiva, entre outras emoções. Identificamo-nos empaticamente. Além de me identificar com supostas necessidades do bebé, eu identifico-me com o bebé que eu fui (que deixou marcas inconscientes), lugar do mais absoluto desamparo. Quando um adulto pensa na experiência do bebé, pode fazer emergir angústia ao perceber um bebé à mercê do Outro, essa situação de desamparo do bebé poderá ser tão assustador para o adulto que ele pode precisar de se afastar completamente do bebé. Mas isso constitui-nos. Por outro lado, poder desidentificar-me do bebé permite também que eu cuide dele.

Estas competências humanas vão-se desenvolvendo à medida que as exercitamos, mas elas não nos são atribuídas ou herdadas pelo género, pela classe ou pela raça.

Quando pensamos em pai e mãe, figuras jurídicas e sociais, estamos a pensar em adultos que assumiram perante a nova geração um certo lugar muito especifico, um lugar de nomeação. Sendo filha de alguém eu possuo um sobrenome dessa pessoa, que na nossa cultura escolhe o primeiro nome, por exemplo; em algumas culturas indígenas quem escolhe o primeiro nome são os tios.

Na nossa cultura, ser pai e mãe de alguém é também oferecer um nome e um sobrenome, inserindo o sujeito numa linhagem, mas isso não será necessariamente da ordem da função parental (podemos, por exemplo, numa instituição cuidar de uma criança sem lhe oferecermos o nosso nome). Se por algum motivo não temos esse sobrenome, podemos construir uma linhagem a partir de outros referentes: por exemplo, ser português, nascido no Porto, acolhido na instituição X, pessoa Y cuidou de mim.

A função parental é frequentemente associada aos conceitos de função materna (processo de alienação) e função paterna (processo de separação), embora o seu uso actualmente seja criticado de forma disseminada. No entanto, é importante mantermos estes termos (função materna e paterna), compreendermos o seu enquadramento histórico e percebermo-los num certo viés ideológico importante (uma geneficação da função). Se sabemos que a função é de ordem matemática, poderá ser preenchida por qualquer pessoa/instituição, isto é, não podemos imaginar desempenhar uma função materna durante o dia e esperar o pai chegar ao final do dia para desempenhar a função paterna, num regime de turnos de funções.

O Papel Parental diz respeito ao social: quem vai buscar à escola? Quem troca fralda? Quem trata das refeições? Quem falta ao trabalho para acompanhar a consultas?

Os papéis vão sendo definidos a partir de um determinado contexto social. Recentemente, cada vez mais, os papéis são modificados e as atribuições do que pai e mãe fazem vão caminhando para uma possibilidade de permuta total, onde cada um faz com os filhos aquilo com o que tem mais afinidade e menos o que foi determinado à priori; caminhamos assim para relações onde os papéis podem ser intercambiáveis entre homens e mulheres e outros géneros.

Essa é uma questão que tem sido muito confundida com a função.

 

A função não é generificável, mas o papel sim, a partir de costumes, hábitos que vão sendo modificáveis com o tempo. Por exemplo, se numa família na qual o pai fica em casa como cuidador da criança, o pai é considerado desqualificado, é isso que marca a criança. Não o facto de ser o pai em si. A questão relaciona-se mais com a forma como nós (vi)vemos esse facto, se o papel tem dignidade, reconhecimento e valor.

A função que constitui sujeito nos primórdios vai sendo substituída por um processo no qual não vamos precisar continuar, isto é, continuamos a ser pai/mãe de um adolescente mas o que está em jogo já não será a constituição subjectiva mas sim a formação do sujeito, o cuidado, a responsabilização, a possibilidade de dar instrumentos para que ele esteja no Mundo. A prerrogativa do exercício da parentalidade é fazer a intermediação da relação entre a criança (sujeito em construção/formação) e o Mundo, até que a criança tenha ferramentas para estar no Mundo, mais tarde como adulto.

Breve nota, aludindo ao surgimento do conceito de infância (Renascimento), quando surge a noção da existência de um período do desenvolvimento em que é necessário um cuidado diferenciado. Se na Idade Média, todos (crianças e adultos) assistiam à queima das bruxas em praça pública e o que seria pudor para os adultos seria pudor para as crianças também, foi-se entretanto construindo uma experiência na qual as crianças não deverão ter um acesso directo às experiências do mundo adulto. Actualmente, passados séculos, regressa à praça pública a vivência de experiências sem filtro: a internet consegue ‘furar’ o espaço da infância. Este será também um tópico importante a pensar relativamente à questão da parentalidade.

Autorizo-me, não sem o Outro

Alem das funções, do papel e das prerrogativas do exercício da parentalidade temos ainda uma questão importante a pensar: pensemos no adulto que cuida da criança. Lacan sublinha uma questão fundamental, refere que nos autorizamos a certas funções no laço social, não sem os outros. Os outros podem reconhecer-me num certo lugar mas eu só me autorizo a ocupar esse lugar a partir de mim mesma, é da ordem do acto, da assumpção de algo que reconheço algo com o qual me identifico. Por exemplo, sou chamada de mulher, sou reconhecida nesse lugar mas autorizo-me como mulher. Isto no qual me autorizo são semblantes que mostram alguns lugares de referências nos quais me localizo. Assim, quando uma pessoa se autodenomina mãe ou pai não tem a última essência de o ser, revela-se sujeito que se autoriza como pai ou mãe, não sem os outros. Não posso autorizar-me apenas a ocupar o lugar de mãe/pai, não sem os outros (pensemos as pessoas que roubam bebés em maternidades), não só pelas questões jurídicas mas também porque fazemos parte de um determinado laço social onde certas relações não têm lugar.

 

Parentalidade e Cultura

Sabemos que na nossa cultura a parentalidade é totalmente atravessada pelo social; então, se por um lado estar inserido numa certa classe social garante o direito de ser pai e mãe, por outro lado a parentalidade vulnerabilizada pelas questões sociais é muitas vezes desautorizada (o sujeito não é autorizado a ser pai/mãe por pertencer a uma determinada condição social, independentemente do seu desejo). Então, aqueles oriundos de uma classe social elevada terão filhos herdeiros e aqueles oriundos de classes sociais precárias terão filhos delinquentes. Pensemos acerca do preconceito em relação ao nascimento de crianças pobres: vemos pessoas em situações de vulnerabilidade que perdem direito à parentalidade numa dupla vulnerabilização (perda do direito familiar devido ao facto de ser sem-abrigo, por exemplo). Muitos casos de perda do poder parental, nos quais pai/mãe são destituídos por inúmeras razões (algumas graves, outras de cunho totalmente social), passam a ser denominados como não sendo pai/mãe para que as crianças possam seguir para adopção. Esta é uma questão importante para pensarmos: como se destitui um pai ou uma mãe? Juridicamente podemos, objectivamente não. Uma mãe que não pode criar o filho presencialmente não é mãe? Pode não exercer a função parental, pode até não ter exercido o papel, mas de alguma forma ela se autoriza como mãe e não podemos destituí-la. Podemos destituir uma mãe que perde um filho?…

Assim, concluindo, quando olhamos os significantes pai e mãe, questionamo-nos se existem diferenças. Juridicamente não sei dizer mas em termos de função parental não parecem existir. O que está em jogo diz mais à generificação dos papéis do que, de facto, a alguma qualidade distinta. O que um pai e uma mãe podem fazer é idêntico. Podem existir diferenças jurídicas, diferenças imaginárias mas, tal como nos diz Caetano Veloso

 

‘Minha mãe, meu pai, meu povo. Eis aqui tudo de novo…’.

Aulagnier, P. (1975). Nota Preliminar. In: A Violência da Interpretação – do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

Benedek, T. (1959). Parenthood as a developmental phase: A contribution to the libido theory. Journal of the American Psychoanalytic Association, 7, 389– 417.

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.

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