Catarina Marques

// A Alternativa de Cuidar 

Conversa com especialista

Catarina Marques 

Breve nota curricular: 

É licenciada em Psicologia Clínica pelo I.S.P.A. (pré-Bolonha). Tirou o curso de Observação de bebés segundo o método de Esther Bick (Lisboa/ Barcelona). Reconhecida com o grau de especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Justiça  e Psicoterapia pela O.P.P.  É psicanalista, Membro Efetivo da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP). Tem experiência Clínica desde 1995, na área da infância, adolescência e adultos na área prisional, cuidados de saúde Primários, Projetos Sociocomunitários, Área do Acolhimento Residencial com Bebés, Crianças e Adolescentes e em Clínica Privada com Crianças, Adolescentes e adultos. Formadora de diversos módulos do Curso de  Especialização em Psicoterapia e Psicanálise da AP.  Supervisora de equipas multidisciplinares, na área do Acolhimento Residencial e Familiar com bebés, Crianças e Jovens e CAFAP.  

Quando o Diogo Silva das Aldeias de Crianças SOS em Portugal me convidou a escrever este artigo sobre cuidados alternativos, revisitei o significado da palavra alternativo(a): “que tem alternação, ora num sentido ora noutro, sujeito a opção, que consente escolha, que representa uma opção entre duas ou mais possibilidades, que pode funcionar para resolver ou substituir alguma coisa, que ou quem não segue interesses ou tendências dominantes, que se propõe como substituto do sistema vigente (…)”  fiquei logo com algumas ideias, que vou tentar transmitir. Retive a ideia de movimento, mudança, transformação e escolha. 

Temos então um sistema de Cuidados Alternativos (C.A.), instituição, equipa, pessoas que se propõem a funcionar de uma forma alternativa face a outro sistema pré-existente. Propõem-se pois a fazer um processo de mudança, de transformação através do cuidado, num sistema, que se pretende que adquira novas competências. 

As duas primeiras ideias que me surgiram: 

É que qualquer C.A. terá de oferecer a possibilidade de ser uma alternativa para as crianças e jovens que não  sentiram, ou por diversos motivos deixaram de sentir, que existiram dentro da mente de alguém,  dentro da mente dos seus cuidadores principais. Então esse é logo à partida um dos nossos principais desafios quando trabalhamos nesta área: disponibilizarmo-nos a ter dentro da nossa mente um lugar para cada um destes bebés, crianças, jovens, famílias. Isto é desde o início um enorme desafio, porque afinal não nos podemos escapar de nós próprios quando os colocamos ao lado de uma série de emoções nossas guardadas algures dentro de um lugar nosso. De uma forma generalizada poderemos dizer: para sermos alternativos teremos de conciliar a subjetividade destes bebés, crianças e jovens com a nossa própria subjetividade.  

Para tal é fundamental percebermos como sentem, como pensam, mas também estarmos tolerantes a não saber como pensam e como sentem. Estarmos disponíveis a percebermos que, por vezes, as experiências pelas quais eles passaram, às quais somos capazes de nos aproximar, estão, por vezes, completamente fora das experiências que vivenciamos. E que, como tal, podemos não conhecer esse lugar que dentro deles foi aterrorizado, roubado nas suas infâncias. Nem termos por vezes, qualquer vivência que se aproxime disso. Ainda que até tenhamos alguma empatia, podem haver áreas às quais não acedemos, ou até que, por motivos pessoais, devido às nossas vulnerabilidades emocionais, que todos temos, não podemos aceder. Sendo que haverá sempre aquele contacto com aquele jovem, criança que nos faz descobrir áreas tenebrosas que não sabíamos que existiam dentro de nós. Sim, o desafio é enorme! 

Ou seja, será também fundamental cada cuidador, independentemente da função que tenha no sistema de Cuidados Alternativos perceber primeiro que é um cuidador e depois como lida com os seus próprios sentimentos, pensamentos e ter um espaço reflexivo sobre si próprio. A relação é o nosso principal instrumento de trabalho e os nossos sentimentos são muitas vezes o único instrumento que por vezes temos (em determinadas fases) de forma a aceder à subjetividade dos jovens.  

A segunda coisa que me ocorreu foi uma entrevista, que guardei na memória, dos “Xutos e Pontapés”. Nesta, o entrevistador perguntava qual era a receita para a banda se manter até hoje unida, quando se viam tantas bandas que começavam e passados alguns anos terminavam. A resposta foi “aparentemente”, simples: quando um dos elementos queria terminar a banda os outros não queriam, e assim foi sucedendo, nunca estiveram todos ao mesmo tempo com vontade de acabar a banda. Como alternavam a vontade de cuidar e a vontade de deixar de cuidar, a ligação nunca se rompeu (portanto houve sempre este alicerce no cuidado que era dado pelos outros que mesmo perante movimentos mais destrutivos de um dos elementos, o grupo mantinha-se unido pois continuavam a existir em maior escala as forças de integração). Houve também outro fator que esteve presente: foi que a banda nunca impediu nenhum elemento de fazer outros projetos musicais exteriores à banda.

Nunca se cortou a possibilidade de autonomia e individualidade de cada um. Poderíamos dizer que as forças entre os “xutos” e os “pontapés” que ocorrem dentro de uma banda, de uma equipa, de um projeto terão sempre de dar a possibilidade de alternar com a vontade de abraçar, de ligar e vice-versa. Então, logo à partida, teremos sempre de contar que isto se passa num grupo: as forças contrárias têm sempre de existir, cabe-nos a nós cuidar do lugar onde elas possam ter espaço para coexistir. É neste sentido que a alternativa deve assentar em permitir que se viva a realidade da força dos afetos, com as suas diferentes forças e intensidades, mas também com a especificidade e individualidade de cada um. 

E isto diz respeito a tudo, à nossa forma de estar com os jovens, à forma como a casa é cuidada, como são as dinâmicas de tarefas na casa, como são organizadas as ementas, as  refeições, a hora de deitar…  

Outra ideia que queria deixar tem a ver com a questão do tempo: 

Nos cuidados alternativos a questão temporal é absolutamente fulcral que seja entendida por nós. Quando falamos em tempo dos afetos, não o podemos confundir com o tempo cronológico. Os afetos vivem em diversos tempos internos. A natureza do tempo psíquico é completamente diferente do tempo cronológico.  Nos C.A. tem mesmo de se possibilitar a vivência dos sentimentos no tempo certo sabendo que o tempo necessário para o cuidado alternativo não é o tempo cronológico. 

Sabemos na psicologia dinâmica que quando os sentimentos não podem ser vividos, integrados no tempo em que ocorreram, temos habitualmente uma experiência patológica que abre a porta para que a patologia se possa desenvolver. O tempo é vivido sem afeto e o afeto é vivido sem tempo. Verificamos muito este fenómeno quando qualquer coisa despoleta no tempo presente uma reação na criança/jovem completamente fora do que seria esperado. Algo que faz parte de um tempo atual é perfurado por um outro tempo. É como se tivesse havido um “wormhole”*, uma dobra no tempo. Acedemos de um lado a um tempo e do outro a outro tempo. O acontecimento do presente faz irromper um tempo do passado que não tinha ainda podido ser vivido, experienciado de forma integrada. É aí que surgem muitas vezes as oportunidades de oferecermos um cuidado alternativo. Onde podemos ajudar a criança, o jovem a ressignificar o seu presente através do que trouxe do seu passado. Mas onde também podemos ressignificar o seu passado através do que está a viver no tempo presente. Carlos Amaral Dias chamava-lhe o carril temporal com que temos de trabalhar. Temos de estar preparados para estarmos diariamente a percorrer um carril temporal entre o presente e o passado e o passado e o presente dos jovens, em que ambos se ressignificam na experiência presente. 

Aquilo que teremos de esperar é que as crianças e jovens repitam no seu presente afetos que não puderam ser elaborados no seu passado. Então percebemos que os repetem precisamente para sair do passado, e nós temos de os ajudar diariamente a elaborar os afetos para poderem vir a simbolizar e para que possam rememorá-los para simbolizarem de novo. Sem este processo não se sai do passado. 

Quando os afetos são vividos no tempo certo, onde se possibilita a integração da experiência e do afeto no tempo presente temos uma experiência saudável e isso deixa-nos mais capazes de lidar com a realidade, mesmo que estejamos a falar de emoções muito difíceis. Portanto um dos aspetos que o cuidado alternativo terá de promover é a possibilidade de finalmente os afetos e as emoções serem vividos com tempo e no tempo presente. Desta forma, estaremos a dar esperança de que finalmente se podem viver as emoções, no sentido que as conseguimos elaborar internamente e integrar. E não deslocarmos essas emoções para outro tempo no futuro em relações que nada têm a ver com as que despoletaram esses sentimentos. 

Temos assim de entender que as queixas que muitas vezes estas crianças e jovens fazem no presente, por muito que até possam parecer despropositadas na sua intensidade, têm de ser escutadas, e possibilitar algum momento de transformação. Eu acolho e cuido da forma como a criança se expressa e vou ressignificar a sua queixa, aliada ao conhecimento que já tenho dela. A criança está a dar-me uma oportunidade de transformação por muito pequena que seja. 

Usamos para isso uma ferramenta deixada pelo conhecimento psicanalítico, o modelo continente-conteúdo de W. Bion. O conteúdo (queixas, pedidos, dúvidas, comentários, gritos, entre outros) que os jovens nos trazem nós acolhemo-lo dentro de nós (somos o continente) e através da nossa função de cuidadores devolvemo-los transformados de forma que a criança possa receber algo novo que ela pode integrar. Temos de ter em conta que quando devolvemos algo ao bebé, criança, jovem isso tem uma intenção de que seja algo que ela possa integrar e elaborar, porque nós já a elaboramos um bocadinho. Como a mãe pássaro às vezes “mastiga” o alimento antes de dar o alimento à sua cria, como forma de o sistema digestivo desta o poder integrar e digerir. Muitas vezes temos de ir dando este alimento em pequenas doses para que o “sistema digestivo” dos nossos jovens possa digerir. Ninguém pode comer um grande bife quando o estomago não come um há muito tempo, têm de ser doses pequeninas que possam ser absorvidas pelo sistema. 

Num concerto que assisti do Carlão, logo a seguir à Pandemia, em vários momentos do concerto ele projetava várias frases dele, que tinham a ver com as músicas/letras que cantava. Partilho esta, porque acho que tem tudo a ver com o que falamos: “Eu não quero ter coisas que eu não viva!”. O cuidado alternativo terá de contemplar a possibilidade destas crianças e jovens terem coisas, sentimentos, dúvidas, medos, stress que possam viver (digerir e integrar).  

Sabemos que muitas vezes as crianças e jovens não sabem pôr as suas necessidades em palavras e que, às vezes, as colocam em palavras que nada têm a ver com o que sentem. Ou, que muitas vezes, acham que aquilo que mais desejam é aquilo que precisam para o seu bem-estar psicológico. Somos nós que teremos de lhes mostrar que aquilo que eles às vezes desejam não é o que necessitam. Outras vezes, instala-se um medo nos cuidadores sobre como abordar determinados assuntos do jovem e alimentam-se os “não ditos”. Dá para perguntar: “Se até eu sinto medo em abordar um determinado assunto, quanto mais o jovem?”. Temos de ser corajosos!  

Este é pois, outro dos aspetos importantes dos cuidados alternativos, promover a abolição dos “não ditos”. Se a criança diz, eu tenho mais elementos sobre como ela está a pensar, e se eu digo o que eu penso, a criança apreende o que eu penso e a intencionalidade do meu discurso. Não deve haver “não ditos”, nem assuntos secretos. Os “não ditos” só promovem a patologia e a desproteção da criança/ jovem, e do meio onde estão inseridos. Para além disso temos de ter em conta que quando o jovem usa a palavra, quando fala, não quer dizer que fale sempre verdadeiramente, e não é no sentido de nos querer esconder algo. Temos de contar com as rasteiras do seu inconsciente, das defesas que muitas vezes os fazem ser mestres no disfarce dos sentimentos e na forma como, às vezes, usam a palavra para não falar verdadeiramente de si e como tal temos de estar atentos a outras formas de ele se expressar, e validar não só a palavra, mas também outras formas de expressão. Temos de ouvir o que a crianças tem para dizer e temos de ouvir o que a criança não consegue dizer. 

Temos mesmo de nos especializar no cuidado alternativo, temos de saber exatamente o que é mais necessário trabalhar do ponto de vista emocional com determinado bebé, criança ou jovem para que este possa retomar o seu desenvolvimento que ficou suspenso (D. Winnicott) e possibilitar através da “Nova Relação” (Coimbra de Matos) a esperança no futuro. Sempre com o lema tantas vezes enunciado por Coimbra de Matos: “com os pés na terra e com a cabeça na lua”. Onde o sentimento de pertencer a um lugar me leva a poder sonhar, participar e ter vontade de crescer. 

*Termo da Física em que se imaginarmos o tempo cronológico como uma folha, se dobrarmos essa folha e fazermos um buraco de minhoca (wormhole) que perfura as duas partes da folha, ligamos dois tempos diferentes.

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