Mafalda Esteves

// Fala sobre Igualdade

Conversa com especialista

Mafalda Esteves

Psicóloga social e investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra desde 2015. Atualmente é co-coordenadora a nível acional do projeto europeu Colourful Childhood: Empowering LGBTIQ children in vulnerable contexts to combat gender-based violence across Europe (2022-2024). Foi membro de projetos europeu como "INTIMATE: Citizenship, Care and Choice: The Micropolitics of Intimacy in Southern Europe" (2014-2019) (ERC St Grant) e "Diversity and Childhood - Changing social attitudes towards gender diversity in children across Europe" (2019-2021). É atualmente doutoranda em Psicologia no CIS/ISCTE-IUL onde desenvolve uma tese intitulada "Sexualidades invisíveis: Cidadania íntima e bem-estar psicossocial na bissexualidade". Membro da LGBTI+ SOCIAL AND ECONOMIC (IN)EQUALITIES (LGBTI+-inequalities) (COST Action), da Linha Temática 2 - Democracia, Justiça e Direitos Humanos no CES-UC, Grupo de pesquisa em Sexualidades (GPS-CES) e do grupo de investigação Health for all (CIS-ISCTE/IUL). Os seus interesses atuais de investigação incluem contextos vulneráveis, infâncias e bem-estar, diversidade sexual e de género ao longo da vida, movimentos sociais e direitos sexuais e reprodutivos.

Quando pensa no

conceito “Igualdade de género”

que ideias e ideais lhe surgem associados? 

Começo por dizer que não consigo pensar em igualdade de género sem pensar no conceito de justiça social. A igualdade de género relaciona-se com esta ideia de que todas as pessoas, independentemente do género com o qual se identificam (feminino, masculino ou outro), devem poder fazer as suas escolhas, de forma livre, informada e ter acesso às mesmas oportunidades, que lhes permita desenvolver-se de forma plena.

Por isso, mais do que um conceito eu diria que é uma perspetiva, uma lente que nos permite ver com maior nitidez o mundo que nos rodeia e que nos ajuda a identificar o que ainda falta fazer para acabar com a desigualdade em razão do género. Desta forma, a perspetiva de género guiará o modo como construímos o mundo no qual queremos viver e queremos deixar às futuras gerações.

Para fazermos esse caminho é preciso deixar para trás formas de pensar e atuar que que se apoiam em sistemas sociais dominantes androcêntrico e cis-heteronormativo, responsáveis pela produção e manutenção da violência de género. Este é um fenómeno que afeta especialmente as vidas de mulheres e pessoas com diversidade sexual e de género: do assédio sexual, à mutilação genital feminina, à desigualdade salarial entre homens e mulheres, à discriminação social contra pessoas LGBTI+ e presença dos discursos de pânico moral de género (ou também chamados de discursos da ideologia de género) são apenas alguns exemplos que refletem algumas consequências desses sistemas de pensamento.

Não podemos aceitar viver numa sociedade em que as violências de género fazem parte do quotidiano como se fosse de uma inevitabilidade se tratasse. Existem alternativas. No mundo em que queremos habitar têm de caber todas as pessoas. Para isso temos de passar do desejo à ação. Eu vejo esse lugar de esperança e de encontro na organização coletiva. Precisamos criar essas alternativas, exigir e resistir. Pensar de forma feminista ajuda-nos a lembrar que o poder nunca foi dado mas sim conquistado. Por isso, se formos capazes de nos juntar, de ocupar o espaço público (sim, ele também é das mulheres), de partilhar experiências e estratégias de resistência e, porque não, lágrimas e sorrisos estaremos a tecer redes de solidariedade, a construir espaços de cuidado e iremos abrindo caminho para um mundo socialmente mais justo. 

Felizmente esse trabalho já foi iniciado, e é em parte o que explica Portugal ter um marco legal e legislativo em matéria de igualdade e não-discriminação reconhecidamente avançado. Porém, convém relembrar que nenhum direito alcançado em matéria de igualdade de género está garantido. Aliás, é fácil constatar isso através de exemplos bem próximos de nós: na Polónia onde o governo proibiu o direito à interrupção voluntária da gravidez ou na Hungria onde se aprovou uma lei que proíbe discutir sobre género e conteúdos LGBTIQ+ nas escolas.

O trabalho que tenho desenvolvido no âmbito do projeto de investigação Infâncias Arco-Íris desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e no âmbito da tese de doutoramento “Sexualidades invisíveis: Cidadania íntima e bem-estar na Bissexualidade”, desenvolvido no CIS/ISCTE-IUL tem-me permitido compreender que a promoção de uma vida livre de desigualdade, de discriminação e de violência passa por garantir que todas as pessoas, sejam crianças ou adultas, usufruem dos mesmos direitos independentemente do género com o qual se identificam. Por outro lado tem-me permitido analisar em profundidade as consequências nefastas da imposição de expetativas sociais de género na infância, gerando desde logo um enorme sofrimento junto das/os mais novos.

Desde muito cedo, um conjunto de punições sociais são ativadas pelas instituições a quem lhes é concedida a função socializadora como a família ou a escola. Estas instituições encarregam-se de garantir que as crianças cumpram com as normas sociais de género, regulando o seu comportamento. Que o digam as crianças com diversidade sexual e de género que acabam muitas vezes por estar expostas a diferentes tipos de violências motivadas por essas expectativas sociais nas diferentes áreas da sua vida. São empurradas para um futuro de enorme sofrimento físico, psicológico e emocional. Não é por isso de estranhar as elevadas taxas de suicídio junto da população de jovens trans.

É claro que esse processo terá de vir acompanhado de uma mudança na forma como olhamos o género na infância e como nos relacionamos com as crianças. Uma perspetiva centrada na criança exige que abandonemos opiniões sobre as crianças permeadas por uma visão adulta onde estas “são sempre muito novas para saber”.

Somos todas/os pais, tias/os, vizinhas/os, amigas/os e, todas/os e temos o dever de acompanhar e fazer a diferença no quotidiano das crianças que nos rodeiam criando ambientes seguros, espaços livres de violências. Comecemos por ouvir as crianças. Isso é tarefa de todas/os.

De que forma o conceito

de Igualdade tem estado

presente na sua prática

profissional? 

Cruzei-me pela primeira vez com o conceito de igualdade de género quando ainda frequentava o curso de Psicologia na Universidade de Coimbra. Estávamos em 2004 e nessa época estas temáticas estavam ausentes dos currículos formativos de futuros profissionais da Psicologia. Felizmente tive a sorte de ter participado numa sessão sobre des/igualdade de género que acabou por ser um momento marcante e fazer a diferença no meu percurso profissional.

Ao longo destes quase 20 anos de profissão tenho procurado combinar a área da investigação com o trabalho de intervenção psicossocial por acreditar que uma combinação entre diferentes fontes de conhecimento é essencial para irmos respondendo aos problemas sociais contemporâneos.

Ao longo dos anos, desenvolvi trabalho junto de diferentes grupos de pessoas que se encontravam nas margens das preocupações políticas, em situação de vulnerabilidade social acrescida. Integrando desde cedo uma perspetiva de género trabalhei junto de pessoas migrantes, mulheres vítimas de violência doméstica, pessoas com diversidade funcional e intelectual, pessoas que viviam com HIV e tantas outras populações. 

Destaco a minha participação em projetos de intervenção psicossocial focados na promoção da igualdade de género junto de jovens. Um destes projetos tinha como objetivo central a desconstrução de estereótipos de género e dirigia-se a jovens com problemáticas sociais diversas. Desenhamos um programa para aquelas/es que frequentavam o ensino preparatório e secundário e adotamos metodologias participativas para nos auxiliar nesse desafio de trabalhar temáticas ligadas ao género.

Foram organizadas várias atividades dentro e fora do espaço da sala de aula que possibilitou um trabalho de desconstrução dos mitos do amor romântico, de estereótipos associados ao género masculino e feminino e de conhecer o fenómeno da violência doméstica. Nestas sessões trabalhámos também a importância do consentimento bem como potenciais riscos associados às redes sociais enquanto instrumento de controlo e dominação dos corpos das raparigas.

Numa segunda fase, trabalhámos na promoção de relações íntimas saudáveis e no empoderamento das raparigas. Perceber o impacto positivo destas sessões nas vidas daquelas/es jovens, foi uma experiência muito gratificante e deu sentido à nossa atuação enquanto profissionais. Nessas sessões promovíamos debates a partir das experiências das/os jovens e que, estamos convencidas, que tenham feito a diferença e influenciado o sucesso da iniciativa. O Teatro do Oprimido enquanto metodologia de trabalho foi uma ferramenta muito útil e que há muito defendo o seu potencial transformador tanto social como pessoal. Através do jogo teatral ensaiavam-se possíveis “soluções” para um problema social concreto, apresentado ao grupo e que encontrava semelhanças com as suas próprias vivências. Foi sem dúvida um trabalho muito gratificante

Hoje, a partir da academia portuguesa, continuo a desenvolver um trabalho comprometido com esta temática mas hoje o conceito de género é entendido como uma categoria social mais alargada do que antigamente. Vai para além do entendimento binário de género, da ideia de homem em mulher. Nos últimos anos, o meu compromisso está agora mais virado para a população LGBTI+ com especial atenção ao período da infância e juventude.  

Focado na diversidade sexual e de género e nos últimos anos centrada na infância com diversidade sexual e de género. Tenho participado de projetos de investigação que, em conjunto com as comunidades afetadas pelo preconceito e discriminação social pretendem destapar e conhecer melhor os fenómenos de violência e discriminação em razão da orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais de forma a poder atuar no problema.

Pode partilhar connosco

uma experiência / situação

que seja marcante para si

e representativa da

“igualdade/ desigualdade”?  

A violência que todos os dias é exercida contra crianças LGBTI+ é para mim uma situação que ilustra de forma muito clara como ainda temos tanto para fazer em matéria de igualdade. A nossa sociedade falha ao não garantir que as crianças LGBTI+ possam viver uma vida livre de violência. Por exemplo, as escolas são habitualmente ambientes hostis nos quais estudantes LGBTI+ se sentem inseguras/os e ameaçadas/os. A Unesco desde 2012 que identificou o bullying com base na orientação sexual, identidade de género, expressão e género e características sexuais como um problema global que viola os direitos dos/as mais novos/as, prejudicando o seu bem-estar psicossocial e o seu sucesso escolar. Por outro lado, a investigação internacional tem demonstrado que as/os jovens LGBTI+ têm maior probabilidade de sofrer de processo de vitimização, de reportar taxas mais elevadas de absentismo escolar ou de reportar menor pertença à escola.

As instituições e os serviços que fazem acompanhamento na infância tem de aumentar o seu compromisso para com as crianças com diversidade sexual e de género e implementar medidas eficazes de proteção de todas as crianças. Para isso temos de pôr em marcha uma cultura organizacional assente nos princípios claros da igualdade e não discriminação e desenvolver políticas LGBTI+ afirmativas. 

Capikua ft. Karol Conka - Madrepérola

 

“E eu faço do meu jeito Se vem com pouco, não me contento Tento fazer do meu tempo o meu sustento Vejo que não temos nada a temer Nada a esconder, é!”

As Aldeias de Crianças SOS são a maior organização do mundo a apoiar crianças e jovens em perigo ou em risco de perder o cuidado parental.
 

Acredite num mundo onde todas as crianças crescem em amor e segurança. 

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