Filipe Saramago

// Fala sobre Acolhimento Familiar

Conversa com especialista

Filipe Saramago

Breve nota curricular: 

Psicoterapeuta Psicanalítico e Psicologo clínico de formação. Trabalha na àrea de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens desde 2001, inicialmente enquanto psicologo em casas de acolhimento e em equipas de intervenção familiar em meio natural de vida. Desde 2017 exerce funções de Direção no Centro de Capacitação de Alvalade, da SCML, que conta com duas respostas sociais: a Casa de Acolhimento de Santa joana e a Equipa de Capacitação e Promoção do relacionamento familiar

Em 2020 estimava-se que cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, viviam em contexto institucional, afastados das suas famílias.

É sobejamente conhecido hoje, o impacto negativo que a institucionalização tem ao nível do desenvolvimento físico e emocional, e o prejuízo que representa para a saúde mental e para o bem-estar das crianças, sobretudo quando se prolonga no tempo ou se dá em idades muito precoces. Sabemos também, e comprovamo-lo na prática, que crianças que transitam de um meio institucional para um ambiente familiar afetivo e contentor, evidenciam uma melhoria substancial no seu desenvolvimento de uma forma global, sendo que, quanto mais precocemente se dá essa transferência, mais significativos são os índices de recuperação.

Por outro lado, tem vindo a crescer a evidência científica que dá conta dos benefícios do cuidado em ambiente familiar (seja na família de origem nuclear, família alargada ou família de acolhimento), com relações de vinculação privilegiadas, individualizadas e individualizantes, que permitam a subjetivação. Este facto tem levado, também em Portugal, à necessidade de criação e promoção de políticas pública que priorizem a prevenção do acolhimento, a capacitação e a preservação familiar, bem como a disseminação efetiva do acolhimento familiar.

Na primeira infância (período que vai desde a gestação aos 6 anos de idade), e sobretudo nestes primeiros mil dias (até ao fim dos 2 anos), a qualidade dos vínculos estabelecidos irá também determinar a estruturação e maturação cerebral, e consequentemente o desenvolvimento de competências e capacidades físicas, cognitivas e afetivas. A qualidade das relações e cuidados recebidos neste período, constituem-se como material nobre da estruturação psíquica da criança, determinando-a e acompanhando-a ao longo de toda a sua vida. Deste modo, perante relações que apartam a criança do mundo das trocas afetivas verdadeiras e oblativas, afigura-se fundamental agir precocemente, enquanto as janelas de desenvolvimento não se fecharam e a plasticidade neuronal permite reaver um processo desenvolvimental progrediente.

Às 40 semanas de gestação o bebé humano nasce sempre prematuro. Apesar da diversidade de competências que o bebé traz consigo, apresenta um grau de autonomia bastante reduzido. Nasce antes de tempo, enquanto o tamanho do cérebro (um quarto do tamanho final), o nível de calcificação e o desenvolvimento global do feto permitem que o parto se dê pelo canal pélvico. Nessa medida, o nascimento psicológico dá-se então fora do útero materno, em relação, num processo de interação social, onde apenas um Outro pode assegurar a sua sobrevivência física e psíquica.

Quando nasce, o bebé só pode verdadeiramente começar a sê-lo em determinadas circunstâncias. O potencial (herdado, mas não determinístico) de se constituir enquanto Ser, só se torna criança se ligado aos cuidados maternos. É pois na relação com um Outro que a criança se constrói, um Outro que através das suas representações vai dando nome às necessidades da criança, traduzindo o mundo e dando significado às suas ações, introduzindo-o no universo relacional e das trocas afetivas, e possibilitando-lhe a criação da consciência da realidade e a aquisição da noção de Eu.

Ora, a criança que precisou de ser acolhida teve, se não antes então nesse momento, forte experiência de descontinuidade na relação edificante, capaz de comprometer o equilíbrio psíquico e o sanígeno desenvolvimento. Como todas as outras crianças, a criança que precisou de ser acolhida necessita de estabilidade, previsibilidade e de um olhar individualizado de qualidade, que lhe permita desenvolver um sentimento de pertença, confiança e segurança. Precisa de ver assim minimizado o impacto das suas vivências traumáticas ou de desproteção e eventualmente aquelas decorrentes da aplicação da medida de acolhimento.

Porém, mesmo as Casas de Acolhimento capazes de garantir uma intervenção de qualidade com as crianças e as suas famílias, muito dificilmente conseguirão assegurar uma continuidade e estabilidade de cuidados e rotinas adaptadas às necessidades individuais de cada uma delas, dada a normativa rotatividade de cuidadores e o número de idiossincrasias das várias crianças a que estes têm que atender.

As crianças e os bebés em acolhimento residencial, são pois muitas vezes sujeitos a desencontros e des-sintonizações da interação, em que os cuidadores se vêm limitados na sua capacidade de encetar simples trocas diádicas e rotinas individualizadas que promovam a personalização e a integração do self num corpo próprio. Por seu lado, o acolhimento familiar permite que as rotinas e os cuidados individualizados se tornem fontes de continuidade, segurança e previsibilidade, onde há tempo e espaço para uma sustentação empática e para a expressão do holding.

Acolher uma criança é acolher também a sua história e acolher a sua história é acolher também a sua família e respeitar a sua singularidade.

A criança que precisou de ser acolhida, está muitas vezes inserida numa cadeia geracional de dinâmicas e padrões relacionais profundamente disfuncionais, podendo, no acolhimento familiar, experimentar outros modelos de relação e cuidado, que lhe permitam ressignificar vínculos afetivos e imagens parentais internas, contribuindo assim para o corte com modelos transgeracionais de relação patológicos. A sua história não se apaga, nem se esquece, podendo até ser repetida com a família de acolhimento, mas é passível de ser traduzida e ressignificada para que não se torne devir.

Assim se percebe como é importante para a criança, desde logo, tão cedo quanto possível, conhecer e compreender a sua história de vida e o vivido até ao acolhimento. É a sua história que a funda, à criança, enquanto sujeito, e a distancia da objectificação por parte de quem dela cuida. Um bebé com dias ou horas de vida tem já uma história que a torna uma pessoa singular, com vivências e experiências próprias que constituem a sua identidade (onde nasceu, como correu o parto, e a gravidez, quem são os pais e qual a sua história, porque foi escolhido o nome que tem…).

Suportadas pelas respetivas Equipas de referência, Família de Origem e Família de Acolhimento, têm um papel determinante e complementar na preservação identitária da criança no acolhimento. Deverão dar continuidade e linearidade à narrativa de uma trajetória de vivências, sabendo desde logo que muitas das memórias familiares são transmitidas envoltas em segredo ou preenchidas pelo pensamento mágico. As Equipas devem pois potenciar a elaboração interna de uma história que é preenchida por vazios, lutos impossíveis, não-ditos e acontecimentos mais ou menos traumáticos, irrepresentados, impensados e não formulados em palavras, de modo a que seja garantido um sentido e permitida a integração.

O trabalho de história de vida assume-se aqui desde o início como uma ferramenta de intervenção terapêutica, para que a criança (se) possa transformar e tornar sua, portanto diferenciada, a herança negativa que lhe foi depositada pelos seus antepassados. História de vida que deve ser ressignificada pela palavra, tão cedo quanto possível, dando estrutura simbólica ao sofrimento e, porque foi declarada, humanizando a angústia, acreditando, como Françoise Dolto, que se contarmos às crianças muito pequeninas a sua história verdadeira, curamo-las

Importa falarmos para o bebé (sujeito que assim supomos presente) e não com alguém sobre o bebé, ausentando-o da relação. Porém, o medo de (re)traumatizar a criança com a verdade da sua história (conto certamente não tão duro quanto o facto de lhe ter sobrevivido), a errada conceção de que esta “não percebe ainda o que se lhe diz”, e a dificuldade em gerir os ecos próprios do sofrimento do Outro, levam a que a história permaneça secreta, e com ela os vazios, até que sejam retomados pela palavra. Ainda que não compreenda o léxico, o facto de estarmos a pôr em palavras ditas os factos importantes da sua história, consagra à criança a possibilidade de esta participar na construção futura de uma versão própria da sua história, a partir da tradução que lhe é trazida pelo cuidador. Por outro lado, permite a este último pensar a ressonância interna e elaborar os conflitos psíquicos trazidos pela história da criança, deixando-o mais disponível para a acolher, e à sua história, e ser continente da sua angústia.

Apesar das eventuais diferenças metodológicas na intervenção com as Famílias de Origem, seja naquelas onde a problemática se prende com a transmissão transgeracional, seja em casos onde a questão é de ordem situacional (em que a história anterior até pode ser positiva, mas no ciclo de vida se deu um qualquer tropeção), importa estabelecer uma relação de trabalho próxima sem juízos de valor, baseada no respeito, honestidade e de total abertura para a singularidade da situação. Com a família (e não pela família), pretende-se trilhar um caminho co-construído, onde se procuram encontrar estratégias para ultrapassar as fragilidades identificadas, tirando proveito das capacidades e potenciando o pensamento reflexivo.

Pensar a criança e o padrão relacional estabelecido com esta, os motivos de acolhimento e a necessidade da medida protetiva, ou a motivação efetiva de mudança e transformação das dinâmicas vivenciais, relacionais disfuncionais, obriga ao acompanhamento de uma Equipa que, para além das óbvias competências técnicas específicas, terá que ser empática, segura (e transmitir segurança) e disponível (também emocionalmente), para garantir um acompanhamento próximo e sistemático. O acompanhamento não se esgota na intervenção realizada nos convívios da criança com a Família de Origem (que devem ser regulares, prolongados e com várias modalidades, para que seja possível não só um diagnóstico célere, mas também um verdadeiro trabalho de fortalecimento/restabelecimento/transformação da relação), passa também por sessões de capacitação e atendimento, onde se discutem, refletem, planeiam e avaliam os planos traçados em conjunto, bem como a evolução dos seus objetivos e ações.

Um grande passo está dado, quando há o reconhecimento da necessidade da medida protetiva e o entendimento de que esta, provisória, servirá para que a Família de Origem se restabeleça, enquanto as várias Equipas intervenientes garantem que os vínculos familiares permanecem e se fortalecem. Outro maior ainda se dá, quando há uma aceitação da pluriparentalidade. Sinal de que as famílias (de origem e de acolhimento), se respeitam e (re)conhecem o seu papel e o seu lugar na vida da criança. Para a criança, a expressão desta pluriparentalidade traz não apenas o amansar de um conflito de lealdade (em que para amar uma família, teria que matar a outra dentro de si), mas o multiplicar de relações de vinculação, que, se não se mantiverem para a vida (era bom que se mantivessem), a tornam afetivamente mais competente e mais bem apetrechada no seu aparelho relacional.

As Aldeias de Crianças SOS são a maior organização do mundo a apoiar crianças e jovens em perigo ou em risco de perder o cuidado parental.
 

Acredite num mundo onde todas as crianças crescem em amor e segurança. 

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