Rui Lopes

A escola do futuro

é (ainda) mais terapêutica

Conversa com Especialista

Rui Lopes

Consultor externo das Aldeias de Crianças SOS
Psicólogo, formador, consultor e supervisor, com experiência variada no âmbito da Promoção e Proteção de Crianças e Jovens

Uma instituição terapêutica é uma instituição transformativa. Nesse sentido, a Escola é, por natureza, uma instituição incontornavelmente terapêutica – pois transforma todos aqueles que a frequentam. De modo a ser terapêutica, a escola necessita ser livre, democrática, participativa, responsiva e emancipatória para todos os elementos da comunidade educativa. Será tanto mais terapêutica, quanto mais for formativa, inclusiva da diversidade, e promotora do trabalho cooperado e colaborativo. Para isso, e talvez antes de mais, é importante que seja humanizada, compreensiva e contentora.

Uma escola terapêutica é habitada por professores e educadores que alfa-betizam palavras e atos - conforme definido por Wilfred Bion.

Professores e educadores que, compreendidos e investidos organizacional e socialmente, promovem o desenvolvimento infantil: auxiliando a criança a descobrir como o mundo ao seu redor se organiza; como se comunica através da leitura e da escrita; para que servem os números e como se faz contas com eles; e progressivamente, dando-lhe a saber e conhecer coisas das ciências exatas, das ciências sociais e humanas, das artes e da cultura, e do desporto - sempre em relação com o outro (e.g. o seu colega, o seu professor, e demais elementos da comunidade educativa). 

Sigmund Freud definiu com cuidado duas funções complementares exercidas por aqueles que têm crianças e jovens a seu cargo. Por um lado, uma função disciplinar, colocadora de limites e organizadora do seu mundo externo (dita “paterna”). Por outro, uma função compreensiva e contentora, enriquecedora do seu mundo interno (dita “materna").

Por outras palavras, na escola terapêutica habitam adultos que, compreendendo as necessidades da criança - tantas vezes insuficientemente amada e desejada por quem a deveria querer melhor - assumem o seu papel reparador e respondem-lhe de modo integrado, integrador e integrante. Atribuem significado ao comportamento infantil, porque compreendem o seu mundo e o seu imaginário: o mundo e o imaginário de alguém que, antes de ser aluno, é criança, é pessoa.

 

João dos Santos, Mestre da infância e da saúde mental infantil em Portugal e no mundo, falou-nos numa Pedagogia Terapêutica através da qual professores e educadores, conhecedores do currículo, de metodologias de ensino, didática e avaliação das aprendizagens, ajudam crianças e jovens a adquirir competências e a crescer saudáveis como pessoas e cidadãos.

A exigência daquilo que se reclama aos profissionais que trabalham com crianças e jovens é grande, pois é equiparável à complexidade e preciosidade social do seu papel e funções. Como tal, para além das áreas de especialidade acima enumeradas, o professor e o educador devem ainda ser especialistas em infância e juventude - pois são profissionais intelectuais da comunicação e da relação (pedagógica), que diariamente cuidam da educação escolar de largas dezenas de crianças e jovens. 

 

 

 

 

 

 

 

Num sentido Rogeriano, as pessoas tratam-se como pessoas, por pessoas. Não com poder, nem por estruturas institucionais de poder. E tal como as crianças, também os professores, antes de o ser, são pessoas. Como nos propõe António Sampaio da Nóvoa, "o professor é a pessoa, e parte da pessoa é também o professor". A questão sobre quem é o professor impõe-se, então, tanto ou mais do que a questão sobre quem é o aluno. 


João dos Santos afirma-nos inquietantemente que “todo o Homem guarda um segredo, e o segredo do Homem é a sua própria infância”. Inquieta mais ainda ao dirigir-se a todos aqueles que se ocupam da infância e da juventude, referindo: 

"A criança modela-se. 

Ajuda-a a modelar-se oferecendo-lhe tudo quanto tenhas de mais autêntico dentro de ti. 

Oferece-te a ti próprio como modelo. 

Faz de modelo, não só com o teu corpo de Homem, mas também com o que resta da tua espontaneidade infantil para o Amor. 

Homens capazes de Amor são aqueles que foram crianças ou que se reconciliaram com a criança que foram. 

Se amas a criança que em ti existe, então podes amar as crianças. 

Podes fazer um filho. 

Se a rejeitaste ou se com ela és irreconciliável então só podes gostar de bonecos de pasta, autómatos de lata e bugigangas para enfeitar o teu espaço esvaziado. Compra-os na loja, não faças filhos. 

Não te ocupes dos filhos dos outros. 

Mas se recuperaste essa criança, se tomaste conhecimento de que uma vontade infantil de sentir, experimentar e saber, existe em ti... 

Então podes estender os braços à criança que está à tua frente. 

Educar é oferecer-se como modelo, 

educar é respeitar o seu próprio modelo. 

Educar é respeitar a criação do Homem 

e do seu Universo. 

Educar é respeitar a criança e a criatividade infantil. 

Se podes ser infantil, podes ser Homem, podes ser Mestre". 

O apoio ao desenvolvimento pessoal e profissional dos professores deve por isso surgir como prioridade numa escola de futuro – em virtude de esta, destemida e descomplexadamente, reconhecer que não transforma apenas alunos, mas também professores. Através de uma prática pedagógica livre e democrática, embora muito acompanhada e suportada, será possível atingir os três grandes pilares que Rui Grácio, num passado contemporâneo, preconizou como função primordial da escola e do professor: 

 

Provocar: pro-VOCARE, dar voz, estimulando à participação; 
Promover: pro-MOVERE, fazer mover, incitando à ação e ao movimento; 
Emancipar: E-MAN / Ex-Mano, tirando a mão de cima, sem coação, sem violência, em plena liberdade. 
 


De modo a tornar-se (ainda) mais terapêutica, a escola do futuro deverá, no presente, assumir-se como livre, democrática, participativa, responsiva, emancipatória: de alunos e de professores; (ainda) mais colaborativa, formativa, inclusiva: entre alunos e professores; e (ainda) mais humanizada, compreensiva e contentora: de alunos e de professores. 

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Este artigo foi publicado em janeiro/2023

*Rui Lopes, consultor externo das Aldeias de Crianças SOS
Psicólogo, formador, consultor e supervisor, com experiência variada no âmbito da Promoção e Proteção de Crianças e Jovens

Barros, E. (1999). Andar na escola com João dos Santos: Pedagogia Terapêutica. Lisboa: Editorial Caminho. 

Bion, W. R. (1984). Learning from experience. London: Karnac Books. 

Freud, S. (2006). The Penguin Freud reader: Selected and introduced by Adam Phillips. London: Penguin Books. 

Grácio, R. (1982). Obra completa III: Educadores, formação de educadores, movimentação estudantil e docente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 

Nóvoa, A. S. (1992). Vidas de professores. Porto: Porto Editora. 

Rogers, C. R. (1967). On becoming a person: A therapists view of psychotherapy. London: Constable & Company Ltd. 

Santos, J. (2007). Ensinaram-me a ler o mundo à minha volta. Lisboa: Assírio e Alvim. 

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